23 dezembro 2010

A dúvida.

"Há uma pergunta que me parece dever ser formulada e para a qual não creio que haja resposta: que motivo teria Deus para fazer o universo? Só para que num planeta pequeníssimo de uma galáxia pudesse ter nascido um animal determinado que iria ter um processo evolutivo que chegou a isto?"

* Saramago

18 dezembro 2010

Humor

Nesta fase do ano não gosto nada, mesmo nada de escrever. É uma fase do ano demasiado pesada. Sómente um pouco de humor me impede de permanecer demasiado taciturno ou de entrar em depressão.

17 dezembro 2010

Desterro


De Babel sobre os rios nos sentamos,
Da nossa doce pátria desterrados,
As mãos na face, os olhos derrubados,
Com saudades de ti, Sião, choramos.

Os órgãos nos salgueiros penduramos,
Em outro tempo bem de nós tocados;
Outro era ele, por certo, outros cuidados;
Mas por deixar saudades os deixamos.

Aqueles que cativos nos traziam
Por cantigas alegres perguntavam:
-Cantai - nos dizem  - hinos de Sião.

Sobre tal pena, pena tal me dão.
Pois tiranicamente pretendiam
Que cantassem aquele que choravam.

(Camões)

30 novembro 2010

Faces


Chuva na cara,
lágrimas ilúcidas,
bandeiras cómodas do remorso.

As outras, as minhas, não são para chorar,
mas para doer.

Pedras do peso de água.
Duras.
De caveira.
Magoam a luz.
Metal por dentro.
Frio queimado.

Estas não.

Lavam as faces perdidas nos espelhos.
Choram-nas os mortos doidos no vento ...

Água térrea de homens vivos nas nuvens.

(Imagens: Praia da Oura)

17 novembro 2010

Encruzilhada


Ó dor que a carne gera
este metal de agonia,
pega na minha alma e tempera-a,
a branda espada de cera,
para a morte de algum dia.

Não a que desce à cratera, 
luz ao longe por guia,
e  onde um anjo nos espera
na encruzilhada macia ...

... mas a morte exígua e oca
em que o único heroísmo
é, neste gritar sem boca,
saber que não há abismo.

02 novembro 2010

Chuva

Na noite a chuva
espreita livre
pela janela chorada.

Ó chuva,
minha amante de suor nu
e cabelos compridos,
cinge-te mais ao espanto do meu corpo.

Saí contigo
para cansar a noite.

Noite,
vela de sombra a derreter-se
na lividez
da manhã de treva clara.

29 outubro 2010

Ímpetos

Na nossa ilha
rodeada de mar de ouvidos
acendemos com palavras naufragadas
as últimas fogueiras
que já não aquecem
os homens que vemos passar através dos vidros.

Nós, ao menos, ainda trazemos nos olhos
ímpetos de mulheres nuas embrulhadas em segredos de bandeiras.

25 outubro 2010

O fio

Ilusão
de que as cinco agulhas do silêncio
cosiam na boca o esgar
dum grito que afinal começa sempre na mão
e só existe quando o acabamos de gritar.

A propósito do grito.

Sinto que perdi
o fio
que me ligava a ti.
Magia do desejo fundo
em que já não acredito.

Força sem mão
que mandava por mim no mundo
com dedos de divindade.

Agora em vão
carrego no gatilho.

Nunca ouço disparar a tempestade.

17 outubro 2010

Pensamentos

Aqueles claros olhos que chorando
Ficavam, quando deles me partia,
Agora que farão? Quem mo diria?
Se porventura estão em mim cuidando?

Se terão na memória, como eu quando
Deles me vim tão longe de alegria ?
Ou se estarão aquele alegre dia
Que torne a vê-los, na alma figurando?

Se contarão as horas e os momentos?
Se acharão num momento muitos anos?
Se fararão com as aves e com os ventos?

Oh! bem-aventurados os fingimentos,
Que nesta ausência tão doces enganos
Sabeis fazer aos tristes pensamentos !
(*) Camões

09 outubro 2010

Vazio

Maquinações de bocas tortas
empalhadas em sol passageiro.

Palavras mortas
sem sabor nem cheiro...

Sons em que não existem portas.

16 setembro 2010

Ruas

Aqui nestas ruas
andei tantas noites
com vielas sujas
e mordaças de pedra.

E que portas abri ?

As estrelas
só tinham portas para as sarjetas
onde o meu rosto
roía nuvens.

Enquanto os outros que passavam,
como hoje, como sempre, como nunca,
continuavam a ver em mim
esta solidão de bandeira
à frente de coisa nenhuma.

(Imagens: Puerto Banús)

08 setembro 2010

Estrelas

Em criança
às vezes modelava perfis de terra
com a lama dos quintais.

Mas parava triste
ao sentir-me mais só.
Estrangulador de abutres
de mãos secas
que um dia hás-de escalar o céu
para dar o verdadeiro fogo, o nosso,
à solidão das estrelas.

(Imagens: Marginal e praia de Fuengirola, em 09/2010)

26 agosto 2010

Palavras

Ar
onde por fim os deuses se perderam
nas veredas dos astros
contentes por tudo parecer concluido,
cada coisa com o seu rosto ignorado.

Entretanto os homens já existiam
resignados ao desdém de respirar...

E com as palavras
começavam a protestar contra o silêncio
- a doce língua morta dos deuses.


(Fotos: Vilamoura, em 07/2010)

Fogo

O fogo
é este bafo húmido dos homens,
prolongamento dos dedos,
sangue fora das veias,
raiva de fugir de mim
por liberdade  em êxtase.

E não o suor vivo
que arde nas lareiras.

Ah! a lenha cheira tão bem a flores com outro sentido!


19 agosto 2010

Sombras

Ah! como odeio
este sentir-me alheio
a tudo quanto amo
e creio!
Os pobres, o sonho, o mundo com falta de pão...

E saber que nunca voltam ao ramo
as sombras das folhas no chão!...

16 agosto 2010

Frio

Aqui nesta praia amarela ...
tanto esperei em vão pelo princípio do mundo
com os pés a doerem-me
como conchas de sangue no nu dos tapetes...

Depois despia-me
e desafiava o mar
para sentir na pele
aquele frio antigo tão doce como alfinetes...

11 agosto 2010

Corpos


Que é isto ?

Todas as mulheres na plateia
desabotoaram os vestidos
para mostrar os seios nus
à espera das bocas que voavam
na escuridão da sala.
Às vezes para completar a música
falta apenas que os homens e as mulheres
se confundam
no deboche
de um acorde.

Hoje as mulheres são diferentes.
Vieram de outro planeta nos raios do sol
e esconderam-se por dentro das flores
no gozo depravado do pólen.

Oh! a naturalidade com que as mulheres passeiam os corpos
... instrumentos dos deuses.

10 agosto 2010

Vento


A esta hora
espero sempre ouvir a confissão impossível
da boca das pedras.

Impossível porque talvez não houvesse crime
ou foi tão perfeito que ninguém o cometeu.

Ou sonhei-o apenas para dar sentido às pegadas
que o vento apagou aos gritos
no meu jardim de lâminas.

Ficou apenas o cadáver que se desfez a si mesmo
com ácidos de penumbra,
enquanto o assassino olhava aterrado
para as suas mãos puras.

06 agosto 2010

Dúvidas

Hoje, para mim o sonho e a realidade
confundem-se no mesmo fel lascivo
de subterrâneo sujo ...

Mentira ? ... Verdade ? ...
Sei lá se sonho ou se vivo !
Fujo.
~~~~~~
Hoy para mí el sueño y la realidad
se confunden en la misma hiel lascivo
como un sótano sucio.

Mentira? ...En serio?...
No sé si sueño o si vivo!
Corro.
~~~~~~
Today, for me the dream and reality
become confused in the same gall lascivious
underground dirty.

Lie?... Really?...
I don't know if I dream or alive!
I run.
~~~~~~
Aujourd'hui, pour moi le rêve et la réalité
se confondent dans le fiel lascive,
souterrain crasseux.

Mensonge?... Vrai?...
Je ne sais pas si je rêve ou si je vis!
Je cours.

03 agosto 2010

Rumos

Acabaram-se os pequenos rumos
no desespero do mar vil.
Acabaram-se os voos exíguos
nos horizontes das águias cegas.

Agora só há no mundo o grande destino
que iguala todas as pedras e todos os olhos
na mesma grandeza
da cidade a arder
na noite sem limites.
(Fotos: Praia da Galé)

27 julho 2010

Sentidos


Olho para o céu imenso
com desespero comovido.
Aquela nuvem sou eu que a penso
ou nada tem sentido.

Fotos: Praia da Rocha (Portimão)

26 julho 2010

Manhãs.


Foi numa manhã de flores lúcidas,
com o sol a nascer oculto,
que vi de repente
remper das pedras e das árvores
uma luz de terra
a iluminar a discórdia de tudo
da harmonia de haver alma
a sangrar da realidade.

E desde então
fiquei preso ao suor do sol do mundo
pelas algemas da liberdade.

(Imagens: Marina de Vilamoura, na hora do café matinal)

09 julho 2010

Tudo sonho ...


E se o tecto abatesse de repente
e víssemos no céu
as nuvens, a lua e as estrelas ?

Tudo sonho ...

É impossível existir a lua
e aquele saxofone tocado por um preto
com dentes brancos a açucarar a música.

02 julho 2010

Matinal


Não.Hoje não me espanto.
Quero viver como os outros
e sentir no meu canto
a alegria dos potros
numa planície matinal
onde tudo, tudo,
tudo parece natural
e explicado.
Mas, sobretudo,
eternamente parado.

Imagens: Praia da Rocha (Algarve)

17 junho 2010

Improviso.



De noite sentava-me ao piano
e às vezes improvizava o terror
das tempestades sem trovões
e sem vento.

Com pena de não poder inventar outro instrumento
que, com rigor,
descesse até ao som mais fundo do silêncio.

09 junho 2010

Casa.

Casa.
Aqui o sonho é mais exacto,
quase real.
Espanto de fluido e cal.

Encosto a face
ao vidro da chuva
com a sensação quente do abandono
que me esfria a cara.

Lá fora o vento desfaz-se.
E os homens, os prédios, os mortos
vogam no sono...

Cá dentro
por um momento
tudo pára.



08 junho 2010

Imaginando.


Quando o sol encoberto vai mostrando
Ao mundo a luz quieta e duvidosa,
Ao longo de uma praia deleitosa
Vou na minha inimiga imaginando.

Aqui a vi, os cabelos concertando;
Ali, com a mão na face tão formosa;
Aqui falando alegre, ali cuidadosa;
Agora estando quieta, agora andando.

Aqui esteve sentada, ali me viu,
Erguendo aqueles olhos tão isentos;
Aqui movida um pouco, ali segura;

Aqui se entristeceu, ali se riu.
Enfim, nestes cansados pensamentos
Passo esta vida vã, que sempre dura.
(a)


(a) Poema de Camões, com pequena alteração literária.