26 novembro 2008

Silêncio.

Venho do silêncio das ruas desertas
cansado de imaginar lágrimas no mundo.
Ah ! que ninguém se atreva agora a chorar diante de mim
lágrimas autênticas !
Só as outras me comovem
- a música das lágrimas
que trago no coração
a gelar-me os olhos
desta ternura seca
de amor implacável pelo mundo.

25 novembro 2008

Areia.

Sentado no vento
vejo-a a olhar para a areia que escorre
por entre os dedos
- dez ponteiros
de um relógio atento.
As mãos dos homens
pensam o tempo.

24 novembro 2008

Flores.

Deitada ao comprido na relva
vi-te de repente com os cabelos verdes
e os braços erguidos
a abrirem-se em flores de dedos ...
... Flores carnívoras
que estrangulavam o vento
por doçura de capricho ...
( E então senti
na Terra e em ti
respirar o mesmo bicho.)

22 novembro 2008

Futuro.

(Desperdiçar uma mente é uma coisa terrivel)
Devagar fabrica-se o mundo
com cartilagens de silêncio,
que pena o ventre não ser de vidro !
para vermos os rios fugirem dos mapas
para além da química dos limites
dos bichos herdados.
Máquina de fazer Futuro
que já não funciona com aurora
mas com ódio
- o ódio redondo
do amor puro
que se ignora.

20 novembro 2008

Noite.

Noite
- vela de sombra a derreter-se
na lividez
da manhã de treva clara.
Mar.
Restos de naufrágio
com olhos e nádegas,
seios e pelos
que o vento sacode
na areia ...
A inocência
às vezes parece-se com a morte.
Sonâmbula e feia.

18 novembro 2008

Raio de sol.

Este raio de sol
alonga-se ao meu lado na cama
- lança de ouro
igual à que o meu monstro
do remorso dos dias simulados
brandia todas as manhãs
para salvar o mundo
montado no dragão dos pesadelos.
Mas para que serve agora esta lança
de cólera imune ?
Para dourar cabelos ?
Para semear sóis ?
Dorme, dorme,
arma do remorso inútil
ao longo dos lençóis.

17 novembro 2008

Pétala.

A menina acordou
com uma rosa de toucador
em cada dedo ...
E a espreguiçar-se na luz do sono
enfeitou os cabelos com as mãos
à espera de as ver desfolhar-se,
pétala por pétala com unhas,
na conclusão física do Outono.
Gritou !
e surgiu-lhe de súbito uma flor
nos dedos.

15 novembro 2008

Perfume.

Respiro e canto
o cheiro a frio
dos lençóis ainda quentes
da carne das mulheres
que saltaram dos sonhos para as camas
das manhãs inibidas.
Depois abro a janela
para ver o sol do meu tamanho no chão,
tapete de primavera
que os olhos sujam
de borboletas caídas ...
... Perfume imperfeito
que não inventou ainda a flor possível.

13 novembro 2008

Norte.

De súbito, acordei
perto das coisas distantes
com a ténue tentação
de dar um salto na sombra
até chegar ao coração do norte.
Mas fiquei de olhos fechados
a cair dentro de mim
noutra sombra ainda mais densa
-onde dorme à minha espera,
tão ignorante de abismos,
a minha sorte, só minha,
que nunca apagou estrelas
nem adormeceu as raízes ...

12 novembro 2008

Trevas.

Ousaram
fechar um homem na treva
promovê-lo ao silêncio
impor-lhe muros de sede.
E agora ?
Ei-lo sozinho,
terror de olhos secos
com uma lâmpada de lágrimas
no coração
a furar um túnel de névoa
na parede.
Ousaram
iluminar a treva com homens.

11 novembro 2008

Pérola.

Abri a ostra e encontrei a pérola.
Um leve beijo com o toque da língua,
Fez ela morder o lábio e mergulhar
Arrepiada no oceano de fogo,
E uma gigantesca onda de calor
Banhou seu tênue corpo salgado.
O vento uivou desconcertante
Completamente alucinado
Por cima das nuvens de nácar
Comprimindo os sons
Com um aperto, um urro
E um puxão de cabelo.
Fiquei tonto, totalmente inebriado
Com a beleza desta jóia
De valor inestimável,
Continuando minha busca
De cultivar sempre
A beleza rara
E deliciosamente pronta a ser aberta.
A sensível "ostra" !

10 novembro 2008

Luas.

Nas noites escuras
rachei umas pedras
onde encontrei escondidas
- vejam - estas luas.
Tomem-nas, poetas.
Uivem !
O sol buscou nas minhas mãos
o que em ti acaricio
para te forrar o corpo
de pele de frio.
Ah ! se ao menos a tua carne fosse real
e não esta procura constante de existires
na lógica de um sonho
com musgo de arco-íris.

06 novembro 2008

Corpo.

Frémito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele,
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doido anseio dos meus braços a abraçar-te.
Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!
E vejo-te tão longe! Sinto a tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que me não amas...
E o meu coração que tu não sentes,
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas...
(*) Florbela Espanca.

04 novembro 2008

Mãos.

Mãos
por onde escorre
o ruído quente
dos corações de água dissolvidos...
Pequeno repetir do princípio do mundo
a que só falta
o nascimento das ilhas.
Espuma de luz
no sono líquido dos olhos
a boiarem nus ...

03 novembro 2008

Espuma.

A alegria do sol
aos saltos como pássaros,
penas brancas,
olhos pardos ...
Mas onde está o espelho
para reflectir os cabelos de mel
das mulheres voadoras
que saem dos rios
montadas em peixes brancos
com escamas de espuma
- guelras inquietas ?
Saltam para as margens,
despem-se
e escondem-se nuas
na música de Mozart
- à espera que as flores
as vão violar.