30 novembro 2009

Nuvens.



Aquela nuvem
parece um cavalo...
Ah! se eu pudesse montá-lo!

Aquela?
Mas já não é um cavalo,
é um barco à vela.

Não faz mal.
Queria embarcar nela.

Aquela?
Mas já não é um navio,
é uma torre amarela
a vogar no frio
onde encerraram uma donzela.

Vá, lancem-me ao mar
onde voam as nuvens
para ir numa delas
tomar mil formas
com sabor a sal
- labirinto de sombras e de cisnes
no céu de água, sol, vento e luz,
secreto e irreal ...


26 novembro 2009

Beleza.


A beleza da mulher
escondeu-se. Onde está?
Gaveta de retratos velhos.

Fotografia na carteira.
Já não existe a fome
dos espelhos.

Nem traz na boca
o que na pele
morde de desejos.

Sol com dentes.

Agora a beleza da mulher
é uma lua por dentro.

25 novembro 2009

Neve.

Chegaste
vestida de luto
a cheirar a sémen de neve.
E a morte iluminou
o que havia em nós
de tortura
e sombra breve.
A outra morte.
A impura.

23 novembro 2009

Grito.

Vai-te, poesia !
Deixa-me ver friamente
a realidade nua
sem ninfas de iludir
ou violinos de lua.
Vai-te, poesia !
Não transformes o mundo
descarnado e terrível
num céu de esquecer
com mendigos de nuvens
famintos de estrelas
e feridas a cheirarem a cravos,
enquanto os outros, os de carne verdadeira,
uivam em vão
a sua fome de estrelas
e de pão.
Vai-te, poesia !
Deixa-me ver a vida
exacta e intolerável
neste planeta feito de carne humana a chorar,
onde um anjo me arrasta todas a noites para casa
pelos cabelos
com bandeiras de lume nos olhos
para fabricar sonhos
carregados de dor e lágrimas.
Vai-te, poesia !
Não quero cantar.
Quero gritar !

18 novembro 2009

Gumes.

Vejam, vejam esta borboleta
que esvoaça
com asas de caveira preta.
Que me anuncia?
Punhais de desgraça?
O voltar súbito da ampulheta?
E ponho-me a pensar
na burocracia
de sonho nulo
que a trouxe até mim
do fundo do casulo
- para me prevenir de quê?...
De que misteriosos gumes de perigo?...
Que bom! Ver o universo preocupado comigo.

16 novembro 2009

Névoa.

"Canto como se o mundo fosse criado agora mesmo!"
- dizem todos os dias os poetas
à névoa da manhã.
Mas afinal que mundo ?
Este do lodo erguido
com cânticos de pássaros degolados
com a noite a esconder na lua
a prata do sol dos roubos ?
Pobre mundo
onde as flores não devoram os lobos !

12 novembro 2009

Cardos.

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.
Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.
Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.
Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra nos pés.
Complicação de luas e saliva.

10 novembro 2009

Instantes.

#~~~~ Coloquei o meu sonho num navio e esse navio em cima do mar; depois, abri o mar com as mãos, para o meu sonho naufragar. As minhas mãos ainda estão molhadas com o azul das ondas entreabertas, a cor que escorre dos meus dedos a colorir as areias desertas. O vento vem vindo de longe, a noite curva-se com o frio; debaixo da água vai morrendo o meu sonho, dentro de um navio... Chorarei quanto for preciso, para fazer com que o mar cresça, o meu navio chegue ao fundo e o meu sonho desapareça. Depois, tudo estará perfeito; praia lisa, águas ordenadas,
os meus olhos secos como pedras e as minhas mãos quebradas. #~~~~

"Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto ao mar" Sophia de Mello Breyner

09 novembro 2009

Trevos ausentes.

Se eu agora inventasse o mundo
criaria a luz da manhã já explicada
sem o luto que pesa
na sombra dos homens
- conspiração da noite
com pedras.
Luz que o cheiro das ervas da madrugada
aproxima os mortos do silêncio
com esqueletos de asas
- conspiração com o sol
para estarem mais presentes
no tacto da pele da manhã,
mil mãos a afogarem a paisagem,
bafo de flores donde cai
o enlace das sementes ...
Abro a janela.
O mundo cheira tão bem a trevos ausentes!
Bons dias, mortos.
Bons dias, Pai.

05 novembro 2009

Frio.

Frio de sol com grades
na madrugada ferrugenta
- raiva de destinos trocados.
Ah! como diferes
do frio transparente
das mentiras casuais
onde, nos dedos das mulheres
tinem o som das rosas
e o perfume corrupto dos cristais.

04 novembro 2009

Aqui.

Aqui
descemos até às raízes de asas nas plantas
e o luar brilhou por dentro do frio dos dedos.
Aqui
procurámos nas bocas o sabor do pólen
e as mãos acenderam-se em começo de astros.
Aqui
ergueram-se do chão as flores já ressequidas
para se colarem de novo nos ramos da Primavera
com leveza de corações de andorinhas.
Aqui
suor vivo.
Aqui
no princípio do mundo
tu e eu
- para além do meu orgulho
de sol passivo.

02 novembro 2009

Disfarce.

De repente,
no espelho da plataforma da frente
surgiu o clarão instantâneo
da minha face
a tentar gelar a realidade
para além da bruma das cicatrizes.
Pobre pele esticada de disfarce
a dar uma aparência de unidade
a este enredo subterrâneo
de luas com raízes!