27 fevereiro 2009

Segredo.

O segredo
está em não deixar
o tempo devorar-me,
mas devorá-lo eu
com dentes de terra
e medo.
Mastigar tudo,
as sombras, as bocas,
as pedras,
o céu,
os ossos pendentes das caras
e as deusas a cavalo
- patas nas searas,
crinas de faúlhas ao vento...
Devorar o tempo sem relógios
que não deixa sinais
senão nos olhos
das palavras mortais.

24 fevereiro 2009

Astros.

O que eu aprendo nestes dias pardos,
a olhar para o chão !
Principalmente a minha ciência de cardos
- céu que na terra faz criação
de estrelas
com picos azuis
e pontas amarelas.
Hoje, presos à terra,
sem caules
nem fronteiras
de sebes,
descobri novos astros,
espécie de rosas rasteiras
à espera
que as sombras dos homens
as levem de rastos
e perfumem de negro
os bichos benévolos,
- coisas acordadas
que assistem ao espectáculo
húmido das ervas.

20 fevereiro 2009

Baptismo.

Outra descoberta.
O prazer
de povoar com sons a margem deserta.
A alegria de forrar
com palavras e gritos
o desenho das pedras,
dos montes,
e de todos os buracos e sítios.
Baptizar.
Baía do Fogo
que tanto custou a acender.
Porto do Firmamento.
Colina dos peixes que cheiram
a podridão do luar.
Cabo da angústia do Vento.

19 fevereiro 2009

Canção.

Dantes, era tão fácil
ouvir os pássaros na poesia.
Bastava pôr a funcionar
o sistema mecânico
de certas palavras,
dar-lhes corda
e esperar pelas canções
no cristal
que ninguém ouvia.
Só os poetas sem palavras,
e portanto sem poesia.

18 fevereiro 2009

Relógio.

As grandes descobertas
surgem com a naturalidade
de continuarem incertas
- ilhas sólidas no nevoeiro.
Por exemplo :
o tempo sou eu.
Uma espécie de relógio
com pele,
pés doridos do gelo,
a mão que empurrou a porta,
acendeu a luz eléctrica,
lançou a lenha na fornalha
- e agora aqui estou estendida no divã
à espera de quê ?
Dos passos que nunca ouvi,
instantes de outro tempo
sem manhã
nas cinzas do relógio em ti.

Alquimia.

Outras vezes o Sol
parecia mesmo Sol
e não a fantástica bola de neve
pintada de frio amarelo.
Então o vizinho de cima
enfiava a sua boina de espanhol,
as raparigas vestiam roupas
de teia de aranha leve
e algumas até pintavam de preto
o cabelo.
Enquanto o professor de geografia
vinha com os alunos para a rua
dar-lhes uma aula prática
em que explicava a alquimia
daquela moeda
em que o mesmo metal tinia,
agora ouro no sol,
ou branco na prata
com sortilégios de lua.

17 fevereiro 2009

Sonho.

Naquele tempo
tudo se passava em ilhas,
embora ninguem visse as mais secretas,
paisagens de armadilhas
e espelhos indecisos,
onde os poetas deixavam cair
em poços misteriosos,
os seus perfis de Narcisos.
Estou a lembrar-me, por exemplo,
daquela ilha de lago cinzento,
cor de fogo adormecido,
onde todas as tardes,
sentado na margem,
com uma espécie de rede
tentava apanhar a minha imagem
afinal sempre a sombra de um desconhecido,
misturada de mundo e céu
que se punha a chorar
no desejo de ser eu
para além do sonho em que me prolongo.
Narciso de suicídio longo ...

16 fevereiro 2009

Silêncio.

Ah! este silêncio que me persegue
no ruído dos cafés, nos violinos gastos,
na cara nua dos espelhos,
nos punhais decisivos, nos rumos dos
carneiros cegos, nos comícios da certeza,
nas mulheres com esqueletos de veludo,
e principalmente nesta noite caiada de silêncio
em que mais uma vez ponho cabelos numa espada
a fingir de musa
- para cantar, gritar, lutar, morrer
aos vivas à bandeira do nada
dum mundo para todos !
E então entro no café de cabeça levantada
como se levasse de rastos,
à chicotada,
um rebanho de astros ...
Mas dentro de mim sempre este maldito
silêncio que me persegue ...

12 fevereiro 2009

Azul.

Há em ti qualquer coisa de zagala Da serra, de alto e puro, de sòzinho: Música de água, cheiro a rosmaninho E luz dos cimos, que o teu ser exala. Falas: e há para além da tua fala Melodias de flauta pelo caminho, Asas, ao pôr do sol, num torvelinho... Calas-te: e a tarde cai, tudo se cala. E, assim calada, evolas a fragrância, Erradias a extática doçura Que têm as cumiadas na distância, - Tão límpidas, que a gente não atina, No desmaiado azul daquela altura, Onde começa a terra e o Céu termina. (J.Cortesão)

09 fevereiro 2009

Tempo.

À tardinha
acendemos o fogo na lareira.
É como se fosse de novo
o princípio do mundo.
Quando o silêncio
ainda criava as pedras
para depois haver tempo concreto,
tempo alheio
que pouco a pouco
encerrámos à força
na morte fixa dos relógios
- tempo redondo.
À tardinha
acendemos os dedos
para aquecer as árvores mortas
no frio
das flores fugidias
dos moldes e segredos.

Fogo.

O Sol às vezes
adormece na Lua,
outras, suicída-se nos poços,
deita-se na hulha
das noites enterradas
onde o fogo dorme o seu sono
de cama nocturna.
Mas de vez em quando
levanta-se estremunhado,
acorda nas àrvores,
enlouquece no sangue das lareiras
dos tijolos de pedra.
E então viver é dançar
atado a uma labareda.

08 fevereiro 2009

Sombras.

Duas horas da manhã,
café da Lua Morta.
Um criado limpa
nas mesas, nas cadeiras, no chão
as palavras caídas,
silêncios de frases já secas e sujas,
restos de passos,
lama, cuspo, cinza,
poeiras.
A um canto farrapos de sonhos arrefecidos.
E nos copos em frente
sombras com lábios de mulher
- museu de bocas inúteis.
Múmias de desejos
com bocejos.

06 fevereiro 2009

Tédio.

FÉRIAS .
A minha missão é o tédio.
Ensiná-lo às árvores.
Embalar as pedras com bocejos.
Quem sabe se já não vivi de mais ?
O musgo, sangue dos passos que adormecem
não sei que rumo .
No céu , nevoeiro .
Horas a morrerem
numa clepsidra de fumo.

05 fevereiro 2009

A ilha.

Inventário
do que me resta
na minha ilha cercada de neve:
No armário
uma garrafa de vinho
de sonho breve.
Dois olhos fixos
que trouxe ontem da festa.
Um gramofone
para dançar sozinha.
Mata-borrão, canetas, carimbos, telefone,
mais carimbos,
declarações de carga
- pétalas de cólera sombria.
E sobretudo o silêncio
- o silêncio oco
que só por morte me pretencia.

04 fevereiro 2009

" Pássaros" !

Teus seios pequeninos que em surdina, pelas noites de amor se põem a cantar, são dois pássaros brancos que o luar pousou suavemente nessa carne fina. E sempre que o desejo te alucina, e brilha com fulgor no teu olhar, parece que teus seios vão voar dessa carne cheirosa e purpurina. Eu, para tê-los sempre nesta lida, quisera em meus beijos, desvairado, poder vesti-los através da vida. Para assim os ver febris, excitados, de bicos rijos, ávidos ... rasgando a seda que os teve encarcerados.

03 fevereiro 2009

Luz.

Quando o sol encoberto vai mostrando
Ao mundo a luz quieta e duvidosa,
Ao longo duma praia deleitosa
Vou na minha ideia imaginando.
Aquí a vi, os cabelos concertando;
Ali, com a mão na face tão formosa;
Aqui falando alegre, ali cuidadosa;
Agora estando quieta, agora andando.
Aqui esteve sentada, ali me viu,
Erguendo aqueles olhos tão isentos;
Aqui movida um pouco, ali segura;
Aqui se entristeceu, ali se riu .
Enfim, nestes cansados pensamentos
Passo esta vida vã, que sempre dura.
(L.de Camões)

02 fevereiro 2009

Dor.

Ficou apenas esta voz
perdida na boca,
na coragem das nuvens
onde a chuva deixou de se parecer
com as lágrimas dos homens
- porque já ninguém embala
filhos mortos
nem voam olhos na tempestade.
A dor acabou,
para haver liberdade

Espinhos.

Ao longe,
pinheiros.
Mãos hirtas de horizonte.
Silêncio de cardos nos caminhos...
Sedes ...
E foi com estes espinhos
que os homens construiram
a solidão incólume dos deuses.