26 dezembro 2008

Terra e Céu.

Neste incesto
de terra e céu pousado nas casas
e o sol de suor
- que sei eu do resto
para além do musgo de asas ?
Vagos deuses de cores
numa herança de problemas
que ainda existem talvez
por parecerem nuvens com algemas.

20 dezembro 2008

Estrelas.

Não sei se há estrelas !
Daqui não as vejo.
Qualquer dia hei-de ir vê-las
no meu rio Tejo .
Não no céu tão longe e incerto
onde a custo as descobrimos,
mas a brilharem mais perto
nas águas de trevas e limos.
Só assim desse modo
consigo e sei entendê-las.
Caídas no lodo
é que são estrelas.

19 dezembro 2008

Memória.

Os dedos escorregaram no violino
à procura do silêncio...
E abriu-se um rasgão
no fluir sem porto
do tempo estilhaçado...
Rios de horas,
rochas de dureza fluida,
golpes de vento na areia,
circulação de sangue,
cabelos a crescerem...
E no ar
o raio de sol que zumbe
a melodia de não haver trajectória...
Depois a carícia de pensar na sorte.
Tudo parado.
Fixo.
Silêncio com memória.

10 dezembro 2008

Verde.

Quando eu era criança eu tinha um campo verde muito verde, um verde de esperança que o tempo amareleceu. maldito tempo que passou indiferente e nunca se compadeceu... Hoje, esse campo outrora fértil de ilusões, não tem cor nem vida tem apenas recordações... perdeu a sua frescura tornou-se céptico e numa enorme pedra dura. Quem me dera voltar a ser criança... para de novo ter um campo verde, muito verde... um verde de esperança onde eu pudesse de novo construir castelos, mas mais sólidos, para não puderem ruir... Mas o milagre de voltar a ser criança não surgirá, eu sei. É assim a vida !... E eu continuarei no mesmo campo cada vez mais amarelecido pelo tempo até ao dia em que ele secará completamente, comigo .

08 dezembro 2008

Mendigo.

Um ser parou,
parou e chamou,
chamou por meu nome.
Esse ser falou,
falou e chorou,
chorou de fome.
Depois comeu,
comeu e bebeu
do que era meu.
E já satisfeito
deitou-se no leito
e adormeceu.
E sei que sonhou,
mas não acordou
e assim morreu...

05 dezembro 2008

Aragem.

Com pés de aragem
andou toda a noite uma mulher
a colar folhas na paisagem
e invenções de flores
no chão desnudo.
Depois...
Depois...
(E esta mania que eu tenho
de pôr mulheres em tudo!)

03 dezembro 2008

Visão.

Visão da primeira fogueira...
-com os homens sentados em redor
a passarem de boca em boca
o silêncio dos cachimbos
onde se fumam as palavras...
Visão da última fogueira...
-com cidades contruidas de labaredas,
chamas de braços iluminados,
catástrofes de estrelas,
ódio por obrigação de cinzas.
Tudo o que dá aos homens
o calor dos corações das aves
quando batem assustadas
nas mãos dos assassinos.

01 dezembro 2008

A noite.

As estrelas
estão agora ocultas nas coisas
mais perto de mim no chão.
Arranco-as das pedras,
dos ramos, das flores.
E a fogueira arde ...
Arde ...
Mas sou eu quem aquece a noite
com a solidão
das aves.

26 novembro 2008

Silêncio.

Venho do silêncio das ruas desertas
cansado de imaginar lágrimas no mundo.
Ah ! que ninguém se atreva agora a chorar diante de mim
lágrimas autênticas !
Só as outras me comovem
- a música das lágrimas
que trago no coração
a gelar-me os olhos
desta ternura seca
de amor implacável pelo mundo.

25 novembro 2008

Areia.

Sentado no vento
vejo-a a olhar para a areia que escorre
por entre os dedos
- dez ponteiros
de um relógio atento.
As mãos dos homens
pensam o tempo.

24 novembro 2008

Flores.

Deitada ao comprido na relva
vi-te de repente com os cabelos verdes
e os braços erguidos
a abrirem-se em flores de dedos ...
... Flores carnívoras
que estrangulavam o vento
por doçura de capricho ...
( E então senti
na Terra e em ti
respirar o mesmo bicho.)

22 novembro 2008

Futuro.

(Desperdiçar uma mente é uma coisa terrivel)
Devagar fabrica-se o mundo
com cartilagens de silêncio,
que pena o ventre não ser de vidro !
para vermos os rios fugirem dos mapas
para além da química dos limites
dos bichos herdados.
Máquina de fazer Futuro
que já não funciona com aurora
mas com ódio
- o ódio redondo
do amor puro
que se ignora.

20 novembro 2008

Noite.

Noite
- vela de sombra a derreter-se
na lividez
da manhã de treva clara.
Mar.
Restos de naufrágio
com olhos e nádegas,
seios e pelos
que o vento sacode
na areia ...
A inocência
às vezes parece-se com a morte.
Sonâmbula e feia.

18 novembro 2008

Raio de sol.

Este raio de sol
alonga-se ao meu lado na cama
- lança de ouro
igual à que o meu monstro
do remorso dos dias simulados
brandia todas as manhãs
para salvar o mundo
montado no dragão dos pesadelos.
Mas para que serve agora esta lança
de cólera imune ?
Para dourar cabelos ?
Para semear sóis ?
Dorme, dorme,
arma do remorso inútil
ao longo dos lençóis.

17 novembro 2008

Pétala.

A menina acordou
com uma rosa de toucador
em cada dedo ...
E a espreguiçar-se na luz do sono
enfeitou os cabelos com as mãos
à espera de as ver desfolhar-se,
pétala por pétala com unhas,
na conclusão física do Outono.
Gritou !
e surgiu-lhe de súbito uma flor
nos dedos.

15 novembro 2008

Perfume.

Respiro e canto
o cheiro a frio
dos lençóis ainda quentes
da carne das mulheres
que saltaram dos sonhos para as camas
das manhãs inibidas.
Depois abro a janela
para ver o sol do meu tamanho no chão,
tapete de primavera
que os olhos sujam
de borboletas caídas ...
... Perfume imperfeito
que não inventou ainda a flor possível.

13 novembro 2008

Norte.

De súbito, acordei
perto das coisas distantes
com a ténue tentação
de dar um salto na sombra
até chegar ao coração do norte.
Mas fiquei de olhos fechados
a cair dentro de mim
noutra sombra ainda mais densa
-onde dorme à minha espera,
tão ignorante de abismos,
a minha sorte, só minha,
que nunca apagou estrelas
nem adormeceu as raízes ...

12 novembro 2008

Trevas.

Ousaram
fechar um homem na treva
promovê-lo ao silêncio
impor-lhe muros de sede.
E agora ?
Ei-lo sozinho,
terror de olhos secos
com uma lâmpada de lágrimas
no coração
a furar um túnel de névoa
na parede.
Ousaram
iluminar a treva com homens.

11 novembro 2008

Pérola.

Abri a ostra e encontrei a pérola.
Um leve beijo com o toque da língua,
Fez ela morder o lábio e mergulhar
Arrepiada no oceano de fogo,
E uma gigantesca onda de calor
Banhou seu tênue corpo salgado.
O vento uivou desconcertante
Completamente alucinado
Por cima das nuvens de nácar
Comprimindo os sons
Com um aperto, um urro
E um puxão de cabelo.
Fiquei tonto, totalmente inebriado
Com a beleza desta jóia
De valor inestimável,
Continuando minha busca
De cultivar sempre
A beleza rara
E deliciosamente pronta a ser aberta.
A sensível "ostra" !

10 novembro 2008

Luas.

Nas noites escuras
rachei umas pedras
onde encontrei escondidas
- vejam - estas luas.
Tomem-nas, poetas.
Uivem !
O sol buscou nas minhas mãos
o que em ti acaricio
para te forrar o corpo
de pele de frio.
Ah ! se ao menos a tua carne fosse real
e não esta procura constante de existires
na lógica de um sonho
com musgo de arco-íris.

06 novembro 2008

Corpo.

Frémito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele,
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doido anseio dos meus braços a abraçar-te.
Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!
E vejo-te tão longe! Sinto a tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que me não amas...
E o meu coração que tu não sentes,
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas...
(*) Florbela Espanca.

04 novembro 2008

Mãos.

Mãos
por onde escorre
o ruído quente
dos corações de água dissolvidos...
Pequeno repetir do princípio do mundo
a que só falta
o nascimento das ilhas.
Espuma de luz
no sono líquido dos olhos
a boiarem nus ...

03 novembro 2008

Espuma.

A alegria do sol
aos saltos como pássaros,
penas brancas,
olhos pardos ...
Mas onde está o espelho
para reflectir os cabelos de mel
das mulheres voadoras
que saem dos rios
montadas em peixes brancos
com escamas de espuma
- guelras inquietas ?
Saltam para as margens,
despem-se
e escondem-se nuas
na música de Mozart
- à espera que as flores
as vão violar.

31 outubro 2008

Cristal.

Hoje a realidade é de cristal.
Duma delicadeza transparente
que mete medo
quando os olhos atravessam as coisas
até ao fundo do actual.
Continentes com tentáculos,
esqueletos de sangue,
enlace
do sol no mar verde desaparecido ...
De vez em quando
alguém toca nas árvores,
nas flores,
na pele
- e é como tudo se quebrasse
em flores de vidro.

29 outubro 2008

Bosque.

Ah! ir contigo outra vez pelos bosques azuis
a dependurar luas mortas nas árvores
- e inventar flores,
estendido ao teu lado na clareira !
E depois, de novo o princípio do mundo,
acender no teu corpo
a primeira fogueira.

28 outubro 2008

Opaco.

Errei as contas no quadro, preguiça de giz negro -e é tão bom parecer estúpido! Minado pelo sonho -liberdade secreta, rosto de espelho opaco. Assim também a noite que eu via através das janelas fechadas -sozinho na cama quente de solidão. E tantas,tantas somas de estrelas erradas.

27 outubro 2008

Abismos.

Ouve, tu que não existes em nenhum céu : Estou farto de escavar nos olhos abismos de ternura onde cabem todos - menos eu. Estou farto de palavras de perdão que me ferem a boca dum frio de lágrimas quentes de punhal. Estou farto desta dor inútil de chorar por mim nos outros. - Eu que nem sequer tenho a coragem de escrever os versos que me fazem doer.

25 outubro 2008

A palavra.

Guardo na carne a palavra por dizer
como uma voz calada,
e a falta de um sonho por sonhar.
Guardo memórias,
gestos e ânsias
de paixão consumada.
Guardo também lamentos,
momentos palpitantes e horizontes. Guardo até a palavra amor,
que é palavra
com uma saudade dentro.

23 outubro 2008

Mendigo.

Pobre mendigo ! Queres uma mulher nua, mas só tens a lua para dormir contigo. A lua - imagina - que nem a um poeta safisfaz ! - Sonâmbula mulher incompleta com cabeça de menina e corpo de flor de lilás ...

20 outubro 2008

Sedução.

Cala-te, voz que duvida e me adormece a dizer-me que a vida nunca vale o sonho que se esquece. Cala-te, voz que assevera e insinua que a primavera, a pintar-se de lua nos telhados, só é bela quando se inventa de olhos fechados nas noites de chuva e de tormenta. Cala-te, sedução desta voz que me diz que as flores são imaginação sem raiz. Cala-te, voz maldita que me grita que o sol, a luz e o vento são apenas o meu pensamento enlouquecido ... (E sem a minha sombra o chão tem lá sentido!)

17 outubro 2008

Orvalho.

Nesse tempo para mim
amar era trazer uma fogueira
onde colava um rosto de mulher
ou a forma de um jasmim.
De vez em quando vestia-lhe um fantasma novo
ou outro sonho qualquer,
às vezes bastava mudar-lhe o nome
pronunciado com a saliva das manhãs rumorosas
de quem tem sede
não de uma fonte especial,
mas apenas do orvalho
que o sol ao nascer
modela no perfume sedoso
das rosas.

16 outubro 2008

Sombra.

E ali ficávamos os dois a aquecer as mãos de fantasmas ao lume do princípio de Abril. Os dois ? Mas tu quem eras ? O que hoje penso de ti para seres perfume -ou o que resta da sombra do teu perfil ?

15 outubro 2008

Ilusão.

Um dia, a solidão
-que dor de vergonha!-
levou-me pela mão
para o seu baluarte
e disse-me: «sonha!
O sonho é a tua lei!»
E eu para ali fiquei,
tão farto de ser eu,
a ouvir o meu coração
bater em toda a parte,
nos astros do chão,
nas pedras do céu.
E eu para ali fiquei
a arrancar a carne com as unhas,
a viver sem testemunhas
no espelho de mim.
E eu para ali fiquei
com o mundo a obedecer aos meus caprichos:
a luz, as flores, os bichos
e o sol enforcado na floresta,
na alucinação
duma corda de lava
a baloiçar ao vento da minha alma à solta...
E eu para ali fiquei
-pobre de mim que ignorava
a dor da verdadeira solidão
que é esta! que é esta!...
Muita gente à minha volta
e eu aos tombos pelas ruas,
longe de todos e de mim,
a morrer pelos outros
em barricadas de estrelas e de luas.

13 outubro 2008

Vento.

( Aveiro)
Todos os dias passo à tua beira
árvore que tens nos troncos e na tua rama
um destino igual ao meu.
E o mesmo rumo
sem chama
nem fumo.
Aranha de solidão
a tecer como eu
cinzas de não haver fogueira.
Todos os dias passo à tua beira ...
( Mas ai de quem só tem chão !
- sem lavaredas
nem asas de um momento
para ir procurar veredas
no país do vento! )

08 outubro 2008

O corpo.

Dia de horizontes com dez metros

e este azul do céu opaco

que toco com as mãos ...

Dia de alegria sem os limites

em que ninguém nasceu esta manhã.

Nem os perfumes fugiram das flores ...

Nem as lágrimas cairam olhos líquidos...

Nem os voos quiseram ser canções...

E o próprio vento

parou de súbito no Ar

com saudades dum corpo...

(Dia em que não posso mais

e vou saltar o Muro.)

07 outubro 2008

Enganos.

No mar tanta tormenta e tanto dano, Tantas vezes a morte foi aparecida ; Na terra tanta guerra, tanto engano, Tanta necessidade, coisa aborrecida! Onde pode acolher-se um fraco humano, Onde estará segura a sua curta vida , Que não se arme e indigne o Céu sereno Contra um bicho da terra tão pequeno ?

06 outubro 2008

Tédio.

Neste dia a dia de sol e de tédio tudo se esvazia de alma, sem remédio. Sabe-me a metal olhar para as coisas ... E é tão maquinal ver florir as rosas. Nem sequer me iludo em criar beleza, dar-me à natureza como seu conteúdo. Morro pouco a pouco neste calafrio de pisar chão oco sob um sol vazio.

03 outubro 2008

O velho.(*)

Um miserável velho muito se afligia Com um feixe de lenha que trazia: Jogou com ele ao chão, já cansado, E chamou pela Morte, agoniado. Aparecendo-lhe esta, perguntava Com que fim tão aflito a chamava. Rogo-te! disse o velho, de mãos postas, Que me ajudes a pôr o feixe às costas. (*) La Fontaine.

02 outubro 2008

O homem e o sátiro.(*)

Um sátiro teve por companheiro
Um homem, que no frio de Janeiro,
Abrindo a sua boca, as mãos soprava,
Dizendo que com isso as esquentava:
Soprava papas quentes, e dizia
Que para arrefecê-las o fazia.
O sátiro notando a habilidade,
E "cheirando-lhe" mal a variedade:
Diz-lhe: Rua, rua! meu grande amigo;
Rua; que já nada quero contigo;
Marchar; que em quem faz calor e frio
Com a mesma boca, eu não confio !
(*)La Fontaine

01 outubro 2008

Sopro divino.

És uma chama de ternura, Uma brisa carregada de pétalas, Um luaceiro de estrelas Numa noite de Estio . És o sopro de Deus Que faz florir os mundos E traz em si o gérmen De todas as promessas criadoras. Tens a virtude oculta que redime; Podes moldar a vida à tua imagem Bendita a hora em que poisaste Os olhos sobre mim ! No rasto desse olhar, Reflexo sobre o tempo, Regresso ao caos vivo e originário, E, entre o não ser e o ser, Pairo sobre os abismos constelados Como um clarão crepuscular : Sou êxtase, Espírito, Luar ...

30 setembro 2008

O anoitecer.

Procuram guarida as rodas que rodaram na estrada da vida ... Fumos negros saem por chapéus de casas ... Monstos de bronze anunciam as Trindades. Morcegos famintos aguardam o pôr do sol. Cenários de estrelas esperam a vez ...

25 setembro 2008

Ter MÃE.

Bati naquela porta aberta e ouvi chamar alegremente -Ó mãe, vem cá , vem cá depressa ! Era pobre aquela casa humilde aquela gente. Ao longe uma mulher respondeu : -Eu já vou, Filho ! Vou já. E logo a seguir perguntou: -O que é que há ? E sem eu querer uma lágrima atrevida rolou-me pela face ...