30 março 2009

Trono.

Enchi de pedras e de cardos
os caminhos da vida para mim ...
E aqui estou eu agora
neste trono de solidão,
braços vazios sem mundo,
a mostrar com orgulho a minha dor
- por sinal muito pequena
para justificar o mundo
e as estrelas.

27 março 2009

Mistérios.

Aqui às três da manhã
(talvez acordada noutro sítio)
uma criança dorme
- maquinação do frio.
Fome ?
Ah ! não. Agora poemas sociais não.
Convém-me mais o mistério
desta quase morte de existir
com a cabeça deitada nos degraus
a derreter o silêncio das pedras
e dos ossos,
olhos fechados
para não haver manhãs
nem remorsos.
Só esta culpa de carregar mistérios.
Ah ! Passa devagar, Poeta.
Não a acordes.
Os meninos gostam de brincar aos mortos,
fantasias, bincadeiras sem critérios.

25 março 2009

Azul.

Ó céu de altas gaivotas
que faço eu aqui
deitado de costas
na areia dos tempos
- sono de asas mortas ?
Que faço eu aqui
com peso de sombra ?
com o destino igual ao destas flores
limitadas de terra
- a que deram o azul por castigo,
só por não poderem chegar ao céu
no seu perfume exíguo ?

24 março 2009

Luz.

Com naturalidade de sonho na manhã visceral, a árvore do jardim surgiu-me com ramos, e em vez de flores com olhos humanos ... ... agitação azul, verde, incêndio, asas presas, ilhas com pálpebras. E aqueles dois olhos no tronco de doçura terrível (Já os vi não sei onde! Já os vi não sei onde!) a olharem-me com lágrimas de punhais remotos. A luz subia cega no silêncio dos mortos.

19 março 2009

Raízes.

Eh ! mulher de cabelos de cinza esfarrapada!
Levanta-te num arrancar de céu do chão,
e grita ao sol dos outros
a teus pés :
« Sim. O meu menino é magro,
sujo,
triste,
e vesgo para desfear o mundo.
Mas traz no coração
todo o frio ardente
da noite dos ventres rasgados.
E é belo,
como a vingança da solidão das raízes ! »

17 março 2009

Nu.

Ontem,
às três da manhã,
trepei pelo cano da água
até à janela do teu quarto
e vi-te despir
com destreza de frio.
Afinal és apenas como eu
- bicho nu
de passagem breve.
Mais terra do que céu,
menos sol do que neve.

Lágrimas.

Pôs as lágrimas nos olhos.
Ah ! mas ficavam-lhe tão mal !
(Até o espelho riu.)
Duras.
Sangrentas.
Água de metal.
Parecem do avesso.
Fome engomada de frio.
O melhor era deitá-las fora
com desdém solar.
E então em casa
os olhos que sorriam para o filho
desataram a chorar.

16 março 2009

Espaço.

Ah ! se acontecesse enfim qualquer coisa!
Se de repente saísse da terra um braço
e atirasse uma rosa
para o espaço.
Mas não.
Lá está o sol do costume
com a exactidão
de uma bola de lume
desenhada a compasso...
...sol que à noite continua
a andar em redor
nas entranhas da lua
- que é sol com bolor...
E desde que nasci,
haja paz ou guerra,
nunca vi outra coisa.
Ah ! como queres que acredite em ti
- braço que hás-de romper a terra
e atirar uma rosa ?

13 março 2009

Poesia.

Ouve, homem,

que acendeste a primeira fogueira

na floresta.

Um dia,

sim, um dia,

hás-de arrancar as faces das estrelas

com a crueldade da Poesia.

Ar.

Os deuses nasceram incompletos
quando ainda se desprezavam as superfícies
e o espírito não vogava na espuma das vagas.
Tudo se passava então no negro fundo dos oceanos
onde os deuses não se sentiam deuses
mas só ascenção
dos peixes cegos.
Enquanto lá em cima o silêncio
- AO PRINCÍPIO ERA O SILÊNCIO -
se tornava luz, ruído, nuvens, raios, voos, ar,
a primeira estrela ...
Ar.
Ar.
Liverdade à espera.

Uma pérola!

(Este não é um espaço de vídeos, no entanto, pela sua beleza, só pode ficar neste bog. É todo poesia !

Penso que é o 2º vídeo que coloco neste blog. O anterior é uma poema de Leonard Cohen.)

(Para escutar, fazer stop no player no final do blog.)

12 março 2009

Espelho.

Tu.
Última ilha antes do silêncio.
Ponte inquieta, engenharia de névoa
com pilares de suor encantado.
Simplicidade de dois braços a limitarem o mundo
com ímpeto de calor de frutos,
fonte de nuvens para os olhos cegos.
Árvore com duas mãos quentes de lágrimas
a taparem o céu da inutilidade do mistério.
Tu.
Olha-te religiosamente ao espelho,
meu calor do desânimo da tarde.
O teu corpo é mais do que tu.
É a vida a desejar-me.

11 março 2009

Natureza.

O braço duma ninfa
ergeu-se de súbito por dentro das árvores
e atirou para o céu
um destino de flores
a fingirem de pássaros...
E tudo no crepitar da manhã de vozes
me insinuou uma felicidade quente
na melancolia desta solidão
onde em vão me procuro
perdido de mim
num labirinto de sementes, perfumes e folhas verdes
a justificarem o vento de enfeitar o mundo...
esta solidão em que mal se ouve ao longe o vaivém
do mar em ressaca.
E a natureza cheira tão bem
... a erva ... a tojo ... a nada ...

09 março 2009

Destino.

Cai uma pedra no lago...
E uma ninfa que dormia
o sono verde das águas
acordou na superfície
a desenhar com os dedos
uma rosa geométrica ...
Logo os homens se curvaram
para o mistério mais fácil
da flor que tudo explica...
Todos menos eu
- preso das rosas ocultas.
Eu que quero saber sempre
qual o destino da pedra
noutros negrumes sem rasto...
E seguir-lhe a trajectória
até ao lodo mais negro
da dor de todas as almas...
(...para esquecer-me da minha.)

05 março 2009

O mundo.

O nosso mundo é este
vil e suado
dos dedos dos homens
sujos de morte.
Um mundo forrado
de pele de mãos
com pedras roídas
das nossas sombras.
Um mundo lodoso
do suor dos outros
e sangue nos ecos
colados nos passos...
Um mundo tocado
dos nossos olhos
a chorarem musgo
de lágrimas podres...
Um mundo de cárceres
com grades de súplica
e o vento a soprar
nos muros de gritos.
Um mundo de látegos
e vielas negras
com braços de fome
a saírem das pedras...
O nosso mundo é este
suado de morte
e não o das árvores
floridas de música
a ignorarem
que vão morrer.
E se soubessem,
dariam flor ?
Pois os homens sabem
e cantam e cantam
com morte e suor.
O nosso mundo é este...
(Mas há-de ser outro.)

Pólen.

Pobre borboleta morta
que se desfez num sopro
de poeira de asas !
Que ficou de ti no mundo ?
O desenho dum voo
com rasto de pólen ?
Um corpo caído
de cores mais inúteis ?
Uma nódoa apenas
sem a grandeza da morte
- porque a morte é só humana ?
Quero lá saber ! ...
O que me dói
é tudo ser borboleta morta.

03 março 2009

Noite.

Páro nesta rua morta
onde os ecos
esperam em vão pelos passos de ninguém...
São três da manhã
e o frio
transforma-se de súbito em som de flauta
para tornar a solidão mais leve.
Ninguém.
Olhos das janelas apagadas
- enquanto os homens aproveitam o sono
para atravessar as paredes
na bruma das pedras.
Resolvo :
bom sítio para voar.
Porque eu sei voar
nas ruas secretas
às três da manhã
- ímpeto de luz no corpo.
Sei voar
em segredo de motor azul,
salto que dá a volta ao mundo
- e o som da flauta
a segurar-me pelos cabelos
por cima dos telhados ...
Ena !
Mergulho no suor das nuvens!

02 março 2009

Vento.

As estrelas e os sóis
já nascem com esqueletos de cinzas
para as grandes conclusões
dos punhais frios.
E até as rosas
trazem no perfume
o vento das noites desfolhadas.
Só a tua boca
nestas manhãs de sol efémero
teima em beijar-me o coração
com os lábios desfeitos
do amor eterno.

Luz.

As flores,
a lua, o sol,
as estrelas e o vento,
não são palavras apenas
para tecer poemas.
Existem em carne e dor.
E iluminam o papel
com que as palavras criam
para além da pele
a luz verdadeira.