31 outubro 2008

Cristal.

Hoje a realidade é de cristal.
Duma delicadeza transparente
que mete medo
quando os olhos atravessam as coisas
até ao fundo do actual.
Continentes com tentáculos,
esqueletos de sangue,
enlace
do sol no mar verde desaparecido ...
De vez em quando
alguém toca nas árvores,
nas flores,
na pele
- e é como tudo se quebrasse
em flores de vidro.

29 outubro 2008

Bosque.

Ah! ir contigo outra vez pelos bosques azuis
a dependurar luas mortas nas árvores
- e inventar flores,
estendido ao teu lado na clareira !
E depois, de novo o princípio do mundo,
acender no teu corpo
a primeira fogueira.

28 outubro 2008

Opaco.

Errei as contas no quadro, preguiça de giz negro -e é tão bom parecer estúpido! Minado pelo sonho -liberdade secreta, rosto de espelho opaco. Assim também a noite que eu via através das janelas fechadas -sozinho na cama quente de solidão. E tantas,tantas somas de estrelas erradas.

27 outubro 2008

Abismos.

Ouve, tu que não existes em nenhum céu : Estou farto de escavar nos olhos abismos de ternura onde cabem todos - menos eu. Estou farto de palavras de perdão que me ferem a boca dum frio de lágrimas quentes de punhal. Estou farto desta dor inútil de chorar por mim nos outros. - Eu que nem sequer tenho a coragem de escrever os versos que me fazem doer.

25 outubro 2008

A palavra.

Guardo na carne a palavra por dizer
como uma voz calada,
e a falta de um sonho por sonhar.
Guardo memórias,
gestos e ânsias
de paixão consumada.
Guardo também lamentos,
momentos palpitantes e horizontes. Guardo até a palavra amor,
que é palavra
com uma saudade dentro.

23 outubro 2008

Mendigo.

Pobre mendigo ! Queres uma mulher nua, mas só tens a lua para dormir contigo. A lua - imagina - que nem a um poeta safisfaz ! - Sonâmbula mulher incompleta com cabeça de menina e corpo de flor de lilás ...

20 outubro 2008

Sedução.

Cala-te, voz que duvida e me adormece a dizer-me que a vida nunca vale o sonho que se esquece. Cala-te, voz que assevera e insinua que a primavera, a pintar-se de lua nos telhados, só é bela quando se inventa de olhos fechados nas noites de chuva e de tormenta. Cala-te, sedução desta voz que me diz que as flores são imaginação sem raiz. Cala-te, voz maldita que me grita que o sol, a luz e o vento são apenas o meu pensamento enlouquecido ... (E sem a minha sombra o chão tem lá sentido!)

17 outubro 2008

Orvalho.

Nesse tempo para mim
amar era trazer uma fogueira
onde colava um rosto de mulher
ou a forma de um jasmim.
De vez em quando vestia-lhe um fantasma novo
ou outro sonho qualquer,
às vezes bastava mudar-lhe o nome
pronunciado com a saliva das manhãs rumorosas
de quem tem sede
não de uma fonte especial,
mas apenas do orvalho
que o sol ao nascer
modela no perfume sedoso
das rosas.

16 outubro 2008

Sombra.

E ali ficávamos os dois a aquecer as mãos de fantasmas ao lume do princípio de Abril. Os dois ? Mas tu quem eras ? O que hoje penso de ti para seres perfume -ou o que resta da sombra do teu perfil ?

15 outubro 2008

Ilusão.

Um dia, a solidão
-que dor de vergonha!-
levou-me pela mão
para o seu baluarte
e disse-me: «sonha!
O sonho é a tua lei!»
E eu para ali fiquei,
tão farto de ser eu,
a ouvir o meu coração
bater em toda a parte,
nos astros do chão,
nas pedras do céu.
E eu para ali fiquei
a arrancar a carne com as unhas,
a viver sem testemunhas
no espelho de mim.
E eu para ali fiquei
com o mundo a obedecer aos meus caprichos:
a luz, as flores, os bichos
e o sol enforcado na floresta,
na alucinação
duma corda de lava
a baloiçar ao vento da minha alma à solta...
E eu para ali fiquei
-pobre de mim que ignorava
a dor da verdadeira solidão
que é esta! que é esta!...
Muita gente à minha volta
e eu aos tombos pelas ruas,
longe de todos e de mim,
a morrer pelos outros
em barricadas de estrelas e de luas.

13 outubro 2008

Vento.

( Aveiro)
Todos os dias passo à tua beira
árvore que tens nos troncos e na tua rama
um destino igual ao meu.
E o mesmo rumo
sem chama
nem fumo.
Aranha de solidão
a tecer como eu
cinzas de não haver fogueira.
Todos os dias passo à tua beira ...
( Mas ai de quem só tem chão !
- sem lavaredas
nem asas de um momento
para ir procurar veredas
no país do vento! )

08 outubro 2008

O corpo.

Dia de horizontes com dez metros

e este azul do céu opaco

que toco com as mãos ...

Dia de alegria sem os limites

em que ninguém nasceu esta manhã.

Nem os perfumes fugiram das flores ...

Nem as lágrimas cairam olhos líquidos...

Nem os voos quiseram ser canções...

E o próprio vento

parou de súbito no Ar

com saudades dum corpo...

(Dia em que não posso mais

e vou saltar o Muro.)

07 outubro 2008

Enganos.

No mar tanta tormenta e tanto dano, Tantas vezes a morte foi aparecida ; Na terra tanta guerra, tanto engano, Tanta necessidade, coisa aborrecida! Onde pode acolher-se um fraco humano, Onde estará segura a sua curta vida , Que não se arme e indigne o Céu sereno Contra um bicho da terra tão pequeno ?

06 outubro 2008

Tédio.

Neste dia a dia de sol e de tédio tudo se esvazia de alma, sem remédio. Sabe-me a metal olhar para as coisas ... E é tão maquinal ver florir as rosas. Nem sequer me iludo em criar beleza, dar-me à natureza como seu conteúdo. Morro pouco a pouco neste calafrio de pisar chão oco sob um sol vazio.

03 outubro 2008

O velho.(*)

Um miserável velho muito se afligia Com um feixe de lenha que trazia: Jogou com ele ao chão, já cansado, E chamou pela Morte, agoniado. Aparecendo-lhe esta, perguntava Com que fim tão aflito a chamava. Rogo-te! disse o velho, de mãos postas, Que me ajudes a pôr o feixe às costas. (*) La Fontaine.

02 outubro 2008

O homem e o sátiro.(*)

Um sátiro teve por companheiro
Um homem, que no frio de Janeiro,
Abrindo a sua boca, as mãos soprava,
Dizendo que com isso as esquentava:
Soprava papas quentes, e dizia
Que para arrefecê-las o fazia.
O sátiro notando a habilidade,
E "cheirando-lhe" mal a variedade:
Diz-lhe: Rua, rua! meu grande amigo;
Rua; que já nada quero contigo;
Marchar; que em quem faz calor e frio
Com a mesma boca, eu não confio !
(*)La Fontaine

01 outubro 2008

Sopro divino.

És uma chama de ternura, Uma brisa carregada de pétalas, Um luaceiro de estrelas Numa noite de Estio . És o sopro de Deus Que faz florir os mundos E traz em si o gérmen De todas as promessas criadoras. Tens a virtude oculta que redime; Podes moldar a vida à tua imagem Bendita a hora em que poisaste Os olhos sobre mim ! No rasto desse olhar, Reflexo sobre o tempo, Regresso ao caos vivo e originário, E, entre o não ser e o ser, Pairo sobre os abismos constelados Como um clarão crepuscular : Sou êxtase, Espírito, Luar ...