31 maio 2009

Palavras.

Tudo começou na boca
- ao princípio era o verbo -
combinação de palavras com sangue.
Discursos, discursos, discursos ...
Palavras com fogo ritual.
Palavras com mãos que empurram os homens,
abrem abismos,
estrangulam,
deitam chumbo derretido nas chagas,
magoam só por existir.
Dêem-me palavras. Tomem palavras ...
Palavras não faltam,
já tão velhas que parecem novas,
recém nascidas com as mesmas raízes
ignoradas.
É esse o milagre :
nascer todos os dias
nas bocas esquecidas
dos fios de prumo.
Palavras
- silêncio que agride,
os passos do fumo.

29 maio 2009

Motivação.

Ah ! se eu imitasse a alegria
das árvores e do vento
que riem sem motivo.
Mas não. Ando triste.
Já não me contento
em sentir-me vivo ...
E que outro destino existe ?

28 maio 2009

Fogo.

O fogo já não arde
como ardia antes
nos meus olhos de ter amantes.
Com o frio da tarde
chegou lentamente,
nas ruínas do sol já sem asas de borboletas,
outro frio diferente
e tão fundo
como se subisse
dos ossos do planeta.
O frio que gera
o fogo da superfície
e as flores da primavera.

27 maio 2009

Sombras.

Trago nos olhos uma certeza
para além de todas as angústias
da consciência de relâmpago.
E não há dor que a sepulte !
Ira que a rasgue !
Sombra que a apodreça !
É este brado
que vem do princípio das nuvens,
de boca em boca,
de alma em alma,
de olhar em olhar,
a esventrar frutos,
a morder luas
num orgulho de vulcão com asas de fumo.
Só tu existes, homem !
Sozinho, no meio de selvas e da morte !
Sozinho, a acender a terra do sangue da nossa luta,
para não vivermos apenas num monte de pedras
com sombras de escravos
a sujarem as flores !

25 maio 2009

Estrelas.

Tantas estrelas!... Para quê?
Para complicar de beleza
este mistério tão fácil,
mas que os homens não descobrem,
nem nunca descobrirão,
porque somos secundários
na criação.
Portanto as estrelas ...
Ah! para que serviriam elas
se não lhes déssemos ao menos o desdém
de serem belas
para ninguém ?

14 maio 2009

Ninfa.

Ó ninfa sonâmbula
com boca de musgo
a fingir de fonte
no rumor do vale:
que trazes, que trazes no fundo das pedras?
Só esse sussurro
do tédio dos mortos
fartos do silêncio ?
Não ouviste os brados
na fome dos poços ?
Já não há rugidos
no som das cavernas ?
Nem soluços de homens
nos ecos das minas ?
Ou corações pobres
de sofrer inutilmente
por flores sem pétalas ?
Não há mãos de gritos
a rasgar crateras ?
Só esse dormir
de acordada ... ou morta ?
Ah! ninfa sonâmbula
com boca de musgo
a fingir de fonte:
cala o teu murmúrio
de suor de escravos
a aumentar a sede
longa dos senhores ...
E lança na noite
o jorro de sangue
dum grito de abismo
para acordar o mundo
deste apodrecer
de nuvens em pedras.

13 maio 2009

Noite.

Longa,
a noite esvai-se
na lua que foge ...
Ah ! se eu encontrasse
a eternidade do dia de hoje !
Mas só vejo a pouca sorte
a tecer o cio
na lua secreta
que ilumina o frio ...
Entretanto,
com cães nos olhos a morderem as estrelas,
EU CANTO.

12 maio 2009

Luz.

Então
pouco a pouco
comecei a desenhar com melodias
o rosto da luz.
Os sons
procuravam os lábios antigos
do amor ainda virgem
nas fêmeas do silêncio ...
Sentia-me
de súbito responsável pelo sol.
O sonho
envelhecia-me ...

11 maio 2009

Fontes.

Vivam, apenas.
Sejam bons como o sol.
Livres como o vento.
Naturais como as fontes.
Imitem as árvores dos caminhos
que dão flores e frutos
sem complicações.
Mas não queiram convencer os cardos
a transformar os espinhos
em rosas e canções.
E principalmente não pensem na morte.
Não sofram por causa dos cadáveres
que só são belos
quando se desenharem na terra em flores.
Vivam, apenas.
A morte é para os mortos.
Vivam, apenas.

10 maio 2009

Chama.

Não te analises.
Não procures no perfume das flores
a tempestade das raizes.
Nem queiras
desatar o fumo
do carvão das fogueiras.
Ama
com ossos de cinza
e cabelos de chama.
E deixa-te viver
num rio a correr ...

07 maio 2009

Vida.

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite para o ritual do novo amanhecer :
«« Fulano de tal, comunica ao mundo que vai transformar-se em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio. »»
E então, solenemente, com passos de fazer parar o tempo, fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir à despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio. - Adeus ! Adeus ! E pouco a pouco, devagar, sem sofrimento, numa lassidão de arrancar raízes... ( primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos...) o corpo, em vez de desaparecer, começaria a transformar-se em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen... como aquela nuvem além (estão a ver ?) - nesta tarde de primavera ainda tocada por um vento de lábios azuis ...

06 maio 2009

Sombra.

Tantas vezes a vi naquela mesa da noite
calada em si mesma
para não se acordar.
Nesse tempo,
já a poesia não lhe cabia nas palavras,
mas só nos gestos,
na levitação dos passos
perdidos dos ecos ...
E certa tarde com uma lâmpada de sombra
pegou na poesia
e levou-a para um subterrâneo de luz
até ao silêncio
escavado nos gritos.
Nesse tempo,
para não quebrarmos o cristal de vivermos por fora,
já não juntávamos as noites na mesma mesa.
Sorríamos apenas,
cada qual do longe da sua ilha :
- Olá ! Como estás ? -
E ficávamos a sonhar
- simulacro de solidão,
angústias e distâncias.
Hoje não.
Hoje se ainda vivesses por fora
esta nossa morte de todos os dias,
iria sentar-me à tua sombra
para explorarmos juntos o silêncio.
E mostrar-te as bandeiras do frio molhado
que trago nos olhos.
Depois sairíamos ambos para o sabor das trevas
onde as formas se devoram
por dentro do sussurro
das ruas mortas.

04 maio 2009

Indiferença.

Os outros só vêem o teu sorriso
na mascara com cabelo
- esforço de paraíso
na indiferença de tê-lo.
Eu não.
Conheço o desdém
pelo destino que não te sai do coração
- e onde a morte só é morte
quando vem pelo suor da nossa mão.
Coração do tamanho do mundo
onde só cabe afinal
o frio oriundo
do amor total.